O Senne e as Lambics
Estando sob terras belgas, especificamente em Bruxelas, tive a oportunidade de ser guiada por Paul de Ridder (doutor em história medieval e arquivista da biblioteca real Albert I) junto a outros importantes personagens do cenário cervejeiro belga. O tour por lugares históricos no centro de Bruxelas focava profundamente na importância do rio "Senne" (ou em holandês Zenne) nos aspectos históricos e culturais da cidade. Dali nasceu a minha inspiração para este post, mas qual a relação entre o rio Senne e cerveja? Muitas.
Especificamente o vale deste pequeno rio, embora coberto desde século 19, foi e ainda é uma das regiões mais tradicionais na produção de cervejas lambics e suas versões "blendadas" gueuzes.
*Para você que desconhece estes estilos de cerveja, dê uma olhada nas páginas 30 e 31 no catálogo de cervejas do BJCP em português.
Ainda que em um passado não tão distante todas as cervejas eram fermentadas em tanques abertos, as lambics permanecem neste "passado" mesmo após a modernização dos tanques de fermentação. Em oposição à realidade atual, onde processo fermentativo é conduzido em tanques fechados e somente leveduras Saccharomyces cerevisiae ou Saccharomyces pastorianussão intencionalmente adicionadas e quistas no mosto cervejeiro, na produção das lambics, a microbiota local, ou seja, os micro-organismos presentes no entorno participam ativamente no processo fermentativo. O que torna estas cervejas especiais é justamente a diversidade produzida pela fermentação por um número maior de micro-organismos. Estas cervejas vem ganhando os paladares mais exigentes e a cidade de Bruxelas é tão importante que até mesmo o epíteto específico de um dos personagens principais do processo de fermentação das lambics leva o seu nome: as leveduras* Brettanomyces bruxellensis.
*Pra quem não se lembra das aulas de fungos na escola, uma levedura é um fungo unicelular o que quer dizer que ele não é uma bactéria nem uma célula animal. É um fungo e ponto. Os fungos são eucariotas e estão em um domínio muito mais próximo dos animais do que das bactérias, que são procariotas - o que quer dizer que se você pensa que bactérias e fungos são similares porque são unicelulares, você está profundamente enganado.
Cerca de oitenta microorganismos já foram identificados na dinâmica da fermentação de uma cerveja lambic, tanto leveduras quanto bactérias. Ao contrário do que se imaginava no passado, estes micro-organismos não vem somente pelo vento quando os cervejeiros abriam as janelas da cervejaria para que o "os poderes do ar" fermentassem a cerveja. Hoje se sabe que até mesmo micro-organismos não tão abundantes no ar mas muito importantes na produção de lambics estão populando a cervejaria, barris e utensílios desde um período desconhecido. Cada um destes micro-organismos dão às cervejas das famosas cervejarias Cantillon, Boon e 3 Fonteinen um sabor distinto que claramente variarão de rótulo para rótulo, mas passeiam pelas principais características em conterem aromas e sabores similares a vinho e sidra, algumas vezes couráceos e de frutas tropicais. A acidez é certa mas sua intensidade é dependente dos micro-organismos presentes e as condições de fermentação adotadas por cada cervejaria.
Mas não pense que "cervejar" com esta diversidade seja tarefa fácil. No caso, a diversidade de leveduras e bactérias muitas vezes tiram a predição dos resultados mesmo para um cervejeiro experiente, pois dão um novo grau de complexidade à já naturalmente complexa fermentação.
Lidar com populações microbianas com diferentes taxas de desenvolvimento e de comportamento pode representar um problema potencial quando se trata de mercado e da indústria cervejeira ou quando se desconhece que a natureza destas populações comportam-se "sazonalmente", o que implica dizer que a abundância e diversidade de micro-organismos também variam com as estações do ano.
Felizmente hoje os pricipais micro-organismos envolvidos na produção das lambics já foram elucidados, o que pode, de alguma forma, tornar o processo moderno um pouco mais reprodutível. São três principais grupos de micro-organismos envolvidos na fermentação diferenciadores das lambics: as leveduras do gênero Saccharomyces, especialmente S. cerevisiae, as bácterias do ácido lático, especialmente do gênero Pediococcus e Lactobacillus e as leveduras do gênero Brettanomyces*, especialmente Brettanomyces bruxellensis (B. lambicus é considerado na literatura taxonômica atual, uma sinonímia de B. bruxellensis).
*Vale lembrar ainda na aula de fungos, que um fungo pode ter dois nomes genéricos, quando na sua forma sexuada ou assexuada. Brettanomyces é o nome dado à forma assexuada da levedura Dekkera bruxellensis. Estas leveduras não produzem grandes quantidades de álcool mas são capazes de gerarem aromas de couro, quantidades consideráveis de lactato de etila e acetato de etila, ácido acético e podem permanecerem ativas por mais de 16 meses. Outras cervejas belgas (não lambics) também são famosas por suas fermentações mistas com Brettanomyces, como as cervejas Orval.
Na produção atual de uma lambic se utilizam culturas mistas destes micro-organismos (onde das condições e a temperatura de fermentação são cruciais no controle do domínio de culturas, especialmente lácteas sob as leveduras, tendo em vista também que as culturas lácteas são extremamente sensíveis ao índice de amargor da cerveja (IBU)*.
*Este é o motivo pelo qual tradicionalmente são utilizados lúpulos envelhecidos na produção das lambics, cujos alfa-ácidos já foram largamente degradados embora os lúpulos ainda preservem outras características importantes. O trigo também é quase sempre usado, entre 20 a 40% também não por um acaso, já que o mesmo pode aumentar a sensação de corpo destas tão atenuadas cervejas e fornecem importantes precursores na geração de aromas.
Tanto as culturas de bactérias do ácido lático quanto Brettanomyces são consideradas culturas lentas e, portanto, é importante que o cervejeiro tenha em mente que a cerveja se desenvolve também de forma lenta. Geralmente as lambics são maturadas de 1 a 3 anos em barris de vinho, vinhos do porto ou xerez até que se alcance o resultado esperado. São consumidas na sua forma pura ou "blendadas" com outras lambics de diferentes origens, características e idades - gerando gueuzesdistintas. Lambics do tipo Mars e Faro (menos alcoólicas e algumas vezes "temperadas" com ervas e açúcar) são menos comuns e as formas mais fáceis de se encontrar são marcadamente as Fruit Lambics. As mais famosas são feitas com cerejas (Kriek em holandês), como as Kriek Boon, Kriek Lindemans e Kriek Timmermans. Algumas destas variedades já não se usam lambics como base e outras levam frutas como framboesa, pêssego, cassis, uvas e morangos. São usualmente refermentadas na garrafa e é muito comum por aqui que Fruit Lambics sejam servidas com gelos.
Finalmente, após o tour, pude degustar algumas gueuzes apreciadas pelos bruxelenses além de cervejas da mais nova micro-cervejaria da cidade, a Brasserie de La Senne. Durante o meu brinde eu pensei na importância da microbiota nos processos fermentativos e cultura local e na relevância de se valorizar a cultura e as cervejas locais, independente de onde você esteja. Saúde!