Brussels Beer Challenge
Partindo do pressuposto que meus leitores não me cobrem fidelidade às datas das notícias mas sim as impressões que carrego dos eventos que participo por aqui, me sinto livre pra dizer sobre o Brussels Beer Challenge*, que ocorreu em Liège em 01-03 de novembro.
*Se quiser ver um pouco mais dos resultados, fotos e corpo do juízes do concurso, não deixe de clicar nos links.
A partir daí, quero fazer um convite à reflexão dos concursos de cerveja que venho tendo há algum tempo. Parece que existe uma onda de concursos pelo mundo, uma tentativa não só de valorizar as cervejas num contexto geral mas também porque isso vende e movimenta o mercado. Mas, é salutar que sejamos seletivos ao apostar fielmente em uma cerveja simplesmente porque ela foi "medalhada". De alguma forma deveríamos nos apoiar em descobrir a qualidade e a seriedade dos concursos por aí. Felizmente o Brussels Beer Challenge foi um concurso muito novo que pude participar e que me pareceu trazer muitas condições já aperfeiçoadas de outros concursos e que devem ser compartilhadas. Ainda que a proximidade de uma condição totalmente ideal possa estar distante, devemos nos espelhar em concursos sérios para que sejamos justos com as cervejas. Esta foi a segunda edição do concurso que, embora o nome sugira algo mais regional, no Brussels Beer Challenge foram inscritas cervejas do mundo todo e especialmente as cervejas da Bélgica, Itália, Estados Unidos e Alemanha brigaram pelos pódios das diferentes categorias. Ainda que este concurso contasse com juízes de mais de 15 países diferentes e que cada mesa contasse com no mínimo de cinco juízes, o que me chamou atenção foi a forma cuidadosa, não só da organização e condução das degustações, mas de como trabalhar com as estatísticas das notas.
Uma das mesas de julgamento: seis pessoas, seis países, seis profissões e seis diferentes experiências e expectativas de uma amostra de cerveja. Foto: Gabriela Montandon.
Um julgamento de cervejas nada mais é do que a tarefa de por números em sentimentos e preferências e isso sempre vai passear pela subjetividade. A tarefa dos organizadores do concurso é também lidar com a subjetividade pois, em um corpo de jurados, há gente com diferentes experiências, 30 anos degustando, 10 anos produzindo, 5 anos escrevendo, gente que prefere o BA, gente que prefere o BJCP, gente que não gosta de nenhum catálogo, gente com diferentes habilidades descritivas, diferente tolerância para defeitos e diferentes sensibilidades. O que deve ser uma cerveja campeã dentro de um estilo? No mínimo devemos chamar de campeã aquela que apresente qualidade suficiente e enquadramento dentro do estilo mas que, de alguma forma, atenda também as expectativas dos especialistas que estarão num continuum entre apreciadores, comerciantes, produtores, importadores e estudiosos. A campeã vai estar em um número, ou melhor, em uma média correspondente àquelas sensações e sentimentos postos em quesitos como aroma, sabor, aparência, impressão geral e etc. Esse número não deve representar uma realidade apenas: melhor ainda quando um concurso pode dar uma visão de como a sua cerveja se comporta em um pedaço maior do mundo e a diversidade dos especialistas esteja a seu favor. Já que sua cerveja será ou não campeã quando passar por bocas de meia dúzia de juízes, de alguma forma você deve estar assegurado de que não vai passar situações inusitadas e sua cerveja ser 'injustiçada' por ter sido uma Lambic julgada só por alemães ou uma Imperial Stout julgada somente por apreciadores belgas. A história cervejeira e as expectativas de cada país diverge, e muito. Cervejas extremas (torradas, ácidas, lupuladas) agradam mais ou menos. Você não vai querer ter todo o trabalho para perceber que pode ter sido vítima simplesmente porque os juízes vivem em uma única realidade e não compreenderam a sua cerveja.
E lá eu estava. Em cada mesa um mínimo de cinco países. De jornalistas do Reino Unido, importadores italianos, escritores americanos à pesquisadores europeus. O mesmo guia de estilo e o mesmo formulário deveria ser preenchido por pessoas com preferências, experiências e opiniões distintas. E é aí que mora a beleza da coisa. Como homogeneizar os pontos de uma cerveja se, como se não bastasse as diferenças culturais, a forma de pontuar difere entre cada um? Certamente você teve professores que te deram 0,3 pontos, outros 0,5 e outros 0,7 para uma questão "meio certa"e isso fez com que você tirasse média ou não na prova. Lidar com números passa a ser fundamental na medida em que você lida com pessoas que vão dar 20 pontos para uma cerveja razoável enquanto outras darão 40 pontos em 50 para a mesma cerveja.
Existe e sempre existirá este problema que passa do campo mercadológico (uma vez que todo mundo quer uma cerveja medalhista) mas entra, seriamente, no campo dos dados e entra na estatística.
Qual será a média final de uma cerveja que, em 50, tem as notas 10, 24, 28, 32, 35 e 47?
Será a média e assunto encerrado? Desconsiderando uma variação de 37 pontos em 50? Definitivamente não pode ser. Alguns concursos tiram os pontos extremos mas, em segundos, você perde dois pontos da sua curva de seis juízes e você vai sempre trabalhar com quatro pontos. E ainda pior: e se você não tem seis juízes em uma mesa? Nós sabemos que juízes de cerveja não brotam como leveduras. A maioria dos concursos trabalha com três ou quatro juízes. Como você vai tirar os dois pontos extremos fora da curva de tendência e ficar com uma ou duas notas pra dar uma medalha? Certamente quando você compra uma cerveja premiada você não espera ter passado por tão poucas opiniões, ainda que dos maiores experts. A cerveja medalhada precisa, definitivamente, ser passada por mais "olhos" antes de ter a tão quista medalha.
Aí que julguei esta nova forma matematicamente interessante. Assessorados pelos estudantes de estatística da Universidade de Liège, os organizadores do Brussels Beer Challenge optaram por usar a chamada média "winsorized". Pessoalmente julguei considerável pois utilizaram uma medida estatística de uma tendência central. Isso envolve o cálculo da média após a substituição dos pontos extremos da amostra pelos valores restantes mais próximos. Ou seja, a média final vai dar uma estimativa razoável de tendência central e como resultado a nota final está menos vulnerável aos pontos fora da curva - o que no caso implica uma média possível daqueles que acham imperdoável a presença de H2S na cerveja enquanto outros entendem que pode ser simplesmente um problema de maturação.
Essa é uma idéia que pode ser aplicada futuramente nos nossos concursos, já que não temos juízes suficientes para o número crescente de cervejas. Faço um convite a termos um pouco mais de visão crítica na onda de concursos de cerveja por aí. Devemos dar méritos a quem merece mérito, ainda que isso requeira um pouco mais de cuidado com a diversidade e com os números. Nada mal em ter um pouco mais de critério para eleger uma cerveja campeã. Saúde!